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Cidadania, a gente não vê por aqui! Solidariedade inter-geracional e preservação dos espaços públicos

Lucia Rabello de Castro *

Sitiados pela violência e encurralados pelo medo, vivemos na cidade do Rio de Janeiro esperando o pior da convivência com os outros. A tranqüilidade perdida ao longo do processo de crescimento das cidades, tornou a vida em comum algo que temos que suportar, nos isolando em “ilhas de segurança”. ‘Viver com os outros’ é uma das grandes questões que desafiam nossa coragem e nossa disposição de criar um mundo diferente.

No entanto, não seria psicologicamente possível agüentar a angústia gerada por esse contexto urbano, não fossem os pequenos atos de solidariedade e de compartilhamento, que renovam nossa esperança de que a cidade pode reunir os diferentes numa convivência construída agônica e democraticamente. Nos momentos em que se experimentam práticas de re-invenção da convivência urbana, caminhamos no sentido de tornar menos possível a violência, o preconceito e a indiferença. Neste sentido, a luta que se trava por uma cidade melhor acontece nesta capilaridade conquistada dia a dia, nos espaços em que não desistimos de re-afirmar nossa opção pelo mundo melhor que queremos construir.

Os adultos são os que mais respondem pela construção do mundo tendo em vista seu lugar nas decisões sobre o destino das cidades. Mais do que qualquer outra herança que podemos deixar para a geração de crianças e jovens de hoje - mais do que um mundo tecnologicamente avançado, mais do que uma profusão infindável de bens que fazem a vida cômoda e fácil – está a responsabilidade de poder lhes legar um mundo cujas possibilidades de transformação não foram eliminadas pelas escolhas que fazemos no presente. Sobre essas escolhas recai o peso de pensar além do imediatismo, quando não se consideram as conseqüências do que fazemos além do tempo histórico de uma geração.

A situação de ‘morte anunciada’ do Parque do Flamengo, hoje, mostra exemplarmente o que pode ser destruído por uma geração sem possibilidade de reparação. Contra a lei que estabeleceu o tombamento do parque, há um projeto, urdido à sombra de acordos previamente estabelecidos, que prevê a implantação de um empreendimento com 80 mil metros quadrados, inclusive com a concretagem de uma ilha no espelho d’água da Baía de Guanabara1, privatizando essa enorme área pública, e destituindo, portanto, todas as outras gerações que virão de desfrutar da imensidão desse parque público, e de seu ambiente preservado de fauna e flora. A relevância de discutir este projeto tendo em vista os interesses das novas gerações, crianças e jovens, faz-se absolutamente necessário uma vez que são as novas gerações que arcarão com o maior ônus das decisões tomadas inconseqüentemente a esse respeito.

A imensa área pública do Parque do Flamengo significa, não somente um belíssimo conjunto paisagístico da cidade do Rio de Janeiro, mas assume o valor simbólico, frente às novas gerações, do pacto da convivência ampla e democrática. Andar pelo Parque do Flamengo assegura a qualquer um, independentemente de sua crença ou aparência, o usufruto do magnífico legado que nos deixaram gerações anteriores. É nessa espacialidade que as crianças e os jovens podem ter a mais importante lição de convivência com o outro diferente, tão necessária para a construção de sua cidadania. É aí que podem aprender, ao vivo, o sentido de público, tão rarefeito hoje em dia, seja nos espaços, seja nos espíritos daqueles que nos governam. Pois ‘público’ não é apenas um adjetivo que nomeia a qualidade daquilo que pertence a todos. Refere-se também ao processo psicológico que permite que cada criança possa transitar numa outra esfera normativa cujos códigos são distintos daqueles do mundo privado, compreendendo, então, que sua posição na relação com os outros mudou. Esse processo implica aprendizagens que se fazem exatamente nos espaços públicos da cidade, quando os outros, estranhos e diferentes, coabitam o mesmo território, compartilham os bens naturais e relativizam os modos de ser e estar no mundo. Desta forma, o ‘público’, como criação humana intersubjetiva, pode se construir lentamente, tanto nos corações e mentes das crianças, como objetivamente nos espaços da cidade, dando lugar ao que Hannah Arendt chamou de, ‘o mundo’, ou seja, o lugar de todos, homens, mulheres e crianças.

Ter espaços públicos tão esplêndidos como o do Parque do Flamengo, atesta a lucidez de gerações anteriores a respeito da importância dos espaços públicos na cidade para a construção da vida em comum cuja moeda de troca não seja a violência e o ódio. Pelo contrário, a presença de uma área imensa na cidade do Rio de Janeiro, destinada a todos, significou apostar em um outro regime de valores. Nele se acorda que a ‘coisa pública’ costura por cima as vontades e os desejos de cada um, e não reflete de maneira exata e plena o que cada um quer, mesmo que seja a vontade do(s) governante(s). A perspectiva do que vem a ser ‘público’, obtida pela convivência em espaços como o do Parque do Flamengo, abre uma brecha na privatização galopante que assola a vida de crianças e jovens nas grandes cidades, permitindo que eles descubram sentimentos e significados da vida em comum.

Restringir tais espaços públicos vai na contra-mão de uma visão esclarecida sobre as cidades, e reflete um total desconhecimento sobre seu impacto na vida de seus habitantes, principalmente crianças e jovens. Experiências realizadas em outras cidades, como Leeds na Grã-Bretanha e Roterdã, na Holanda2, vão mostrar justamente a re-configuração dos espaços de modo que se tornem menos construídos e mais naturais. Por incrível que isso possa parecer, é como se lá, naqueles países onde quase todos os espaços já foram modificados pela máquina, pelas guerras e pelo capital, agora o esforço é de voltar atrás, dando às novas gerações uma cidade com ares mais humanizados e menos ‘aparelhados’ pelas máquinas e outros equipamentos tecnológicos. Trava-se aí uma luta, pela ação das famílias que movem ações junto aos governos locais, plantando-se árvores, delimitando-se espaços nas ruas para que as crianças andem de bicicleta, e se colocando bancos nas ruas para as pessoas sentarem. Ou seja, tenta-se humanizar o espaço urbano no sentido da convivência e da criação de espacialidades destinadas a todos. Onde existe concreto armado, se quer o verde das árvores que há muito foram derrubadas pela investida do crescimento das cidades. Além disso, nessas e em outras cidades, a preservação do espaço público se articula com a importância de manter viva a memória da cidade para seus habitantes, de modo que o horizonte histórico das novas gerações seja além do que percebem no hoje e no agora. Assim, uma cidade que consiga abrigar traços e marcas do que foi outrora, lega para as novas gerações a perspectiva do fio da história, e, portanto, de que ‘o mundo’ deve ser abrigo não apenas para os que estão vivos hoje, mas para todos os outros que ainda virão.

Nas experiências dessas cidades, são os adultos que se mobilizam para considerar os interesses das gerações que virão e agir solidariamente em relação a elas. No entanto, aqui, na nossa cidade amesquinhou-se o horizonte que pauta as intenções dos que querem transformar parte do Parque do Flamengo em shopping center e estacionamentos. A decisão de modificar o conjunto paisagístico do Flamengo só poderá usurpar das novas gerações de crianças e jovens seu direito à memória da cidade do Rio de Janeiro, e com ele, a possibilidade da experiência singular de vida coletiva que, um dia, nossos antepassados anteviram: um grande parque público ornado pela fauna e flora da região onde se enseja a convivência comum. Tal visão constitui o imaginário por meio do qual nós, cariocas, podemos edificar cotidianamente nossa vontade de viver e trabalhar nessa cidade. Tal visão constitui o horizonte que cristaliza os ideais necessários às novas gerações que devem continuar a tarefa de construir a vida em comum a partir do legado das gerações anteriores. Destruir tal legado fere profundamente os vínculos de solidariedade inter-geracional que gerações futuras só poderão lamentar. A perda será comparada, por sua irresponsabilidade, a uma Hiroshima quando o que se fez, não terá reparação possível.

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* Lucia Rabello de Castro é professora Titular do Inst. de Psicologia da UFRJ, e autora do livro A Aventura Urbana: crianças e jovens no Rio de Janeiro (7Letras/Faperj)

1 Para mais detalhes, ver www.parquedoflamengo.blogspot.com

2 Ver por ex. Lia Karsten & Willem van Villet (2006) Children in the City: Reclaiming the Street. Children, Youth and Environments 16 (1), 151-167. Tim Gill (2006) Home Zones in the UK: History, Policy and Impact on Children and Youth. Children, Youth and Environments 16 (1), 90-104.