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Educar crianças e adolescentes para a vida no trânsito

Eloir de Oliveira Faria *
Marilita Gnecco de Camargo Braga **

No mundo inteiro busca-se melhorar a segurança no trânsito com ações de engenharia, fiscalização e educação. Todas as experiências em educação de crianças e adolescentes objetivam capacitá-los como pedestres e ciclistas, bem como contribuir para a formação de um cidadão que respeite a legislação e não se envolva em acidentes de trânsito. Espera-se que as lições aprendidas na escola perdurem até quando crescer e for motorista.

Exceto por pouquíssimos programas educativos que adotam a cidadania como referência para desenvolver a consciência crítica sobre direitos e deveres no trânsito, quase todas as práticas educativas existentes no Brasil e no exterior abordam o tema sob o ponto de vista informativo. Partem da premissa de que o aluno precisa conhecer comportamentos seguros e como atravessar as vias (treinamento de habilidades psicomotoras).

Esta prática reflete uma visão em que o homem precisa adaptar-se ao automóvel e os acidentes não são entendidos como conseqüência de um modo de vida que cultua o individualismo e a competição. A grande maioria das ações educativas atuais, portanto, colabora para a dominação da máquina sobre o homem. Se ao aluno não for permitido refletir criticamente sobre o trânsito, sobre as conseqüências da liberdade do automóvel no sistema viário e se ele não puder vivenciar os valores éticos, as ações educativas não estarão contribuindo para a formação de um cidadão, nem de um motorista que respeite as regras por compreendê-las como condição fundamental para a vida em sociedade.

Para dar “voz” à criança e ao adolescente, realizou-se uma pesquisa de percepção sobre o meio ambiente de trânsito e, principalmente, sobre as relações entre as pessoas e seus papéis no trânsito. A pesquisa foi realizada em 5 escolas públicas e 5 escolas particulares da cidade do Rio de Janeiro, com 400 alunos da 4ª à 8ª séries do Ensino Fundamental. Como resultado, concluiu-se que os alunos: percebem o ambiente de trânsito como violento; demonstraram estar conscientes dos riscos diários, não se esquecendo da pressa e da velocidade do mundo atual; conhecem as principais regras de circulação, seus direitos e deveres no trânsito; criticam o poder público por não dotar as cidades com infra-estrutura adequada para a segurança no trânsito; preferem medidas concretas para conter a violência no trânsito (policiamento, fiscalização, soluções de engenharia), deixando a educação por último; sentem-se fragilizados perante os motoristas, mostrando-se conscientes do “status” representado pelo carro de passeio e do jogo de poder que se reflete no trânsito; ficam indignados quando seus direitos são desrespeitados; mostram-se sensibilizados com o sofrimento das pessoas que perdem familiares ou se acidentam no trânsito; a impunidade foi vista como importante fator contribuinte para o desrespeito às regras e para a ocorrência dos acidentes; não estão satisfeitos com a sociedade que fica imóvel diante da violência no trânsito.

Parece que estes alunos já sabem muito! Assim, a educação para o trânsito teria pouco a fazer. Por que estes alunos têm uma percepção altamente consciente sobre o assunto? Como mais de 1/3 dos entrevistados foi vítima ou acompanhava alguma vítima de quase acidente ou de acidente de trânsito, isto pode indicar que esta percepção vem do sofrimento diário de circular na cidade. Vivenciaram de perto a violência do trânsito. Se esta pesquisa tivesse sido realizada há dez anos, provavelmente os resultados seriam equivalentes. Os estudantes de então também não teriam tido aulas de educação para o trânsito (obrigatória desde 1999, mas ainda não adotada na maioria das cidades). Eles não teriam encontrado motoristas mais respeitadores dos seus direitos e a cidade não estaria em melhores condições de segurança do que hoje: as estatísticas de acidentes comprovam isto.

Hoje, os alunos entrevistados devem ser jovens de 18 a 26 anos, na faixa etária com a mais alta taxa de mortalidade por acidente de trânsito. Muitos podem ser motoristas conduzindo seus carros e engrossando as estatísticas de acidentes. O que, então, pode ter ocorrido com a consciência crítica? E com seus conhecimentos sobre as regras de circulação? Mais ainda, o que pode ter havido com a sensibilidade demonstrada com a dor das pessoas que perdem familiares no trânsito? Estariam eles reproduzindo a relação desigual de poder que existe em nossas vias e que eles criticavam?

Quando somos oprimidos, tendemos a reproduzir este papel quando temos condições para isto: segundo Paulo Freire, é a internalização do opressor. É claro que nem todos os motoristas usam o carro de forma violenta, mas existe um comportamento que retrata bem este fenômeno: O MOTORISTA NÃO CONSEGUE “ENXERGAR” O PEDESTRE OU O CICLISTA. Mesmo sabendo dos riscos, não consegue perceber a necessidade de reduzir a velocidade em vias residenciais, pois um acidente pode provocar a morte de pedestres ou ciclistas. Quando não há fiscalização, estaciona nas calçadas e pára sobre faixas de pedestres. O motorista entra ou sai de garagens e não espera o pedestre passar, mesmo sabendo que a calçada é o espaço do pedestre! O trânsito tem uma característica peculiar que o diferencia quanto a outros tipos de conflitos sociais: TODOS OS MOTORISTAS TAMBÉM SÃO PEDESTRES em algum trecho de sua viagem. Um motorista que não respeita os direitos destes também pode ter seu direito como pedestre desrespeitado. Em educação para o trânsito, como fazer entender que se respeitarmos os direitos dos outros, os nossos também o serão? Como educar para que não se reproduza o motorista opressor que a criança e o adolescente encontram no seu dia-a-dia? Como preservar a empatia e a sensibilidade que demonstram inicialmente? Será que os alunos entrevistados na pesquisa de percepção deram pistas para estas respostas?

Os alunos acreditam que o indivíduo é o principal responsável pelo acidente de trânsito e que a engenharia e a fiscalização são as principais soluções para evitá-lo. A constatação desta percepção, que reproduz uma visão parcial das causas dos acidentes e possíveis soluções, reforça a importância de promover uma reflexão crítica sobre a responsabilidade coletiva pelos acidentes, de modo a atingir a principal meta das ações educativas: a redução dos riscos nas vias.

Alguns alunos mostraram situações de risco como fonte de prazer: manobras perigosas, excesso de velocidade e a travessia fora da passarela. Contribuir para a mudança desta percepção é um grande desafio, já que envolve uma crença valorizada e muito reforçada pelos meios de comunicação. Somente uma educação que permita ao aluno expressar esta crença, que possibilite uma reflexão ampla sobre seus motivos e conseqüências, pode dar conta de tratar desta mudança de perspectiva.

Os alunos apontaram a necessidade de maior colaboração entre as pessoas e consciência para não se envolver em acidentes de trânsito. Apontaram a condição individual fundamental para se adquirir esta consciência: amor à sua própria vida e à dos outros. Assim, é importante dar oportunidade para os alunos exporem suas expectativas e crenças, mesmo que estas reflitam uma descrença no homem, pois é no confronto de idéias e crenças que se conseguirá a formação de cidadãos conscientes.

A partir destas reflexões, o Programa de Engenharia de Transportes da COPPE/UFRJ desenvolveu o projeto pedagógico Trânsito Com Vida1 que se diferencia da visão tradicional e reconhece a importância do treinamento de habilidades e da formação crítica, mas inclui também a formação em valores humanos. Este programa educativo promove a cidadania através da análise de situações reais no trânsito e da reflexão sobre as conseqüências da liberdade dada ao tráfego motorizado individual no aumento do risco de acidentes. O programa pretende também incentivar a vivência de experiências cooperativas na sala de aula e no trânsito. Reconhecemos que os professores enfrentam a tarefa de abordar uma gama cada vez mais variada de assuntos. No entanto, refletir sobre o trânsito fornece a oportunidade especial de discutir sobre comportamentos que repercutem em inúmeros aspectos da vida do cidadão, trazendo para o debate não somente os riscos a que estamos sujeitos ou que criamos mas, fundamentalmente, a necessidade de se desenvolver uma consciência crítica sobre a responsabilidade coletiva.

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* Engenheiro da Secretaria Municipal de Transportes do Rio de Janeiro
** Professora do Programa de Engenharia de Transportes e Vice-Diretora e Diretora de Planejamento, Administração e Finanças do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia COPPE, Universidade Federal do Rio de Janeiro

1 O Portal Trânsito Com Vida (www.transitocomvida.ufrj.br) foi elaborado com o apoio do CNPq e da FAPERJ.