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Reparação: racismo e anti-racismo em escolas cariocas

Yvonne Maggie*

No dia 26 de janeiro de 2005, o Juiz Federal Substituto em exercício na 1ª Vara, Vicente De Paula Ataide Junior, exarou uma sentença na qual indeferiu um pedido de liminar impetrado por uma vestibulanda de medicina da Universidade Federal do Paraná que considerou seu direito esbulhado por não ter obtido a vaga devido ao sistema de cotas.

O sistema de cotas implantado naquela universidade previa a reserva de 70 vagas para o curso de medicina entre as 176 existentes assim distribuídas: 106 vagas para o vestibular geral, 35 para “afro-descendentes” e 35 para egressos de escolas públicas1. A estudante que impetrou o pedido de liminar havia passado em 118º lugar.

Nesta sentença o juiz dizia

… é chegada à hora de todos nós, brancos e aquinhoados pela vida em abundância, repartirmos o valor da dívida com o povo negro, que pela sua escravidão, contribuiu significativamente para a construção das bases do nosso País. Nosso débito é alto. Você está pagando por ele agora. Meus filhos certamente o pagarão. E é possível que meus netos também o paguem. Mas não é possível negar essa dívida ou retribuir-lhes com a ingratidão ou o egoísmo. Conforme-se. Não há injustiça nisso, pelo contrário, é a justiça que ora é proclamada. Tente novamente. Você certamente conseguirá. E quando estiver nos bancos universitários e olhar para o lado, vendo seus colegas negros lá sentados com você, preenchendo um vazio de dor que antes existia, compreenda que você mesma ajudou a construir essa nova realidade, para que o Brasil começasse a se tornar uma sociedade mais livre, justa e solidária. Por essas razões, indefiro a liminar postulada.

Não será esta escolha entre um estudante que chegou em 118º lugar e a outra que conseguiu uma vaga por ser afro-descendente, uma escolha de Sofia?

Se o peso desta “reparação” vai recair sobre os jovens brasileiros é preciso saber como eles enfrentam o racismo no seu cotidiano escolar e o que pensam dele.

Um resumo muito breve das opiniões expressas por alunos de escolas cariocas pode nos dar algumas pistas sobre esse dilema que se coloca para os brasileiros desde que o estado do Rio de Janeiro decidiu implantar políticas de cotas em suas universidades. Sabemos que tramita no Congresso Nacional o PL 73/99 que estabelece como política de estado a legislação que reserva vagas em todas as universidades federais para estudantes negros, o que ampliará o poder dessa lei fazendo-a nacional por força de lei.

O resultado da pesquisa que estamos realizando mostrou que há uma distribuição da população estudantil segundo a cor nas escolas pesquisadas que não segue de perto a proporção no estado do Rio de Janeiro, pois há 25% de autodeclarados pretos, 39,5% de autodeclarados pardos e 35,5% de autodeclarados brancos. Ou seja, há muito mais autodeclarados pretos e pardos do que brancos.

Em novembro de 2005 foi realizado um survey nas 21 escolas cariocas que eram objeto de estudos de caso intensivo sendo 19 delas da rede estadual, 1 da rede federal e 1 da rede particular. Entre as 21 escolas da rede estadual, 19 tinham tido baixo desempenho na avaliação feita anualmente pela Secretaria de Educação, o Programa Nova Escola e estavam sendo objeto de uma política especialmente desenhada para melhorar o seu desempenho. As duas outras eram escolas consideradas boas nesta avaliação. A escola da rede particular e da rede federal são escolas consideradas de excelência. As 19 escolas da rede estadual estão localizadas em bairros pobres do estado ou em bairros próximos a comunidades pobres. As duas escolas de excelência localizam-se em bairros ricos da cidade. Fizemos perguntas a 391 estudantes destas escolas em uma amostra feita a partir do universo de estudantes que freqüentam estas 21 escolas. É assim uma amostra das opiniões dos estudantes dessas 21 escolas. Os resultados têm uma margem de erro de 5% para mais ou para menos2. Cruzamos as respostas dadas às perguntas feitas no survey com a cor dos entrevistados. Verificamos que tanto os autodeclarados brancos, pretos quanto pardos não se sentiam discriminados embora 40% tivessem presenciado situações de discriminação. Apenas 16,4% dos autodeclarados brancos, 20,9% dos autodeclarados pretos e 15,4% dos autodeclarados pardos disseram ter sofrido algum tipo de preconceito/discriminação na escola, o que é um indicador de que não se sentem muito discriminados.

Quando perguntamos aos que afirmaram ter sofrido discriminação, em torno de 20% dos estudantes, quais os motivos da discriminação que sofreram, alegaram os seguintes motivos: por causa da cor/raça; por ser pobre; por ser mulher; por ser ou parecer homossexual; por ser gordo; por ser bom aluno e finalmente por ser mau aluno. Disseram ter sofrido preconceito ou discriminação por causa de sua cor/raça 86,7% dos autodeclarados pretos; 8,3% dos autodeclarados brancos e 14% dos autodeclarados pardos. A maioria afirmou que tinham sido outros alunos a discriminá-los. 41% dos autodeclarados brancos disseram terem sido discriminados por ser bom aluno, ao passo que 14% dos pardos afirmaram ter sofrido esse preconceito e nenhum autodeclarado preto disse o mesmo. Em terceiro lugar apareceu a discriminação por ser gordo, em quarto por ser ou parecer homossexual, seguido da discriminação por ser mulher, por ser pobre e por ser mau aluno, nessa ordem3.

Já quando perguntados se viram alguma situação de preconceito/discriminação na escola 40% dos estudantes disseram que presenciaram esse tipo de situação. Mas quando perguntamos sobre os motivos da discriminação que viram outros sofrerem aparece uma hierarquia diversa daquela que havia surgido quando da pergunta sobre se sofreram algum tipo de discriminação. Dos autodeclarados brancos 37% parecem ter presenciado mais discriminação por causa da cor ou raça, e todos os estudantes, independentemente de sua cor/raça, viram mais pessoas sendo discriminadas por ser ou parecer homossexual.

Na observação de campo o que vimos com muita freqüência foram xingamentos, gozações, brincadeiras que foram vividas como preconceito ou discriminação. Podemos perceber assim, uma tendência geral a uma espécie de hierarquia de xingamentos. A referência pejorativa à homossexualidade parece ser a mais freqüente sendo seguida por xingamentos referentes à cor/raça, à pobreza, à gordura do colega e por fim ainda referências desairosas a ser bom ou mau aluno, nessa ordem.

Mas os números dizem mais. Vimos que os estudantes autodeclarados pretos sentem mais a discriminação e o preconceito que os autodeclarados brancos e os autodeclarados pardos, no entanto, perguntados sobre se na sua vida cotidiana, na escolha de seus namorados, a cor do parceiro era levada em consideração, todos os estudantes disseram que era indiferente para eles - 82% para os autodeclarados pretos e 69% respectivamente para os autodeclarados pardos e brancos. Ou seja, tudo se passa como se a os estudantes tivessem como estratégia não levar em consideração a cor/raça nas suas escolhas.

Os dados apresentados aqui talvez nos autorizem a dizer que os estudantes escolhem como estratégia desprezar marcadores “raciais” na sua vida cotidiana e nas suas escolhas.

Diante desses resultados será que é lícito criar políticas que se afastem da estratégia até então adotada pelos estudantes cariocas? Será justo fazer recair sobre os ombros desses jovens não só a responsabilidade como as possíveis conseqüências dessa engenharia social baseada na “raça” e que entroniza marcadores “raciais” como critério de distribuição de direitos e estratégia de vida?

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* Yvonne Maggie é Professora Titular de Antropologia do Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ

1 Sobre a implantação do vestibular naquela IFES ver o relatório de Ciméia Barbato Bevilaqua em www.observa.ifcs.ufrj.br

2 Ver sobre a pesquisa o relatório de 2005 no site www.observa.ifcs.ufrj.br

3 Foi difícil estabelecer essa hierarquia porque apenas 20% dos entrevistados afirmaram que tinham sofrido preconceito o que dificulta qualquer análise mais acurada.