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Crianças e Jovens no Brasil: do Horror ao Inconformismo Produtivo

Lucia Rabello de Castro

Crianças e jovens costumam ser personagens utilizados para provocar comoção sentimental que num determinado momento pode se disseminar, mas acaba não surtindo efeitos significativos para a transformação da realidade.

O noticiário sobre bebês abandonados, sobre crianças entregues à própria sorte encarnando precocemente o papel de fora-da-lei, meninos em abrigos amontoados e judiados, ou ainda o número crescente de jovens homens assassinados nas grandes cidades e a prostituição infantil de meninas que vendem o corpo por um prato de comida, tudo isso vai e vem reiterando um cenário social já conhecido, mas que, revestido de novos apelos, incita apenas uma atenção passageira.

Sustentar a indignação por um longo tempo parece ser psicologicamente difícil nas condições em que hoje nos encontramos. No cotidiano avultam-se as preocupações privatistas da luta pela sobrevivência em detrimento das preocupações em torno dos nossos problemas comuns. Portanto, tendo em vista dar conta do que é próprio, delegamos os assuntos de interesse comum aos políticos profissionais e aos governantes, eles sendo vistos como tendo que ‘responder’ pelo estado de coisas ao nosso redor. Neste sentido, não nos sentimos diretamente concernidos pela infância maltratada, sub-nutrida, analfabeta e prostituída.

Por outro lado, o cenário político atual é deprimente. A alguns meses de eleições que irão decidir os governantes em nível federal e estadual, as campanhas se reduzem aos ataques e hostilidades pessoais – procedentes ou não - em torno das malversações do dinheiro público; no entanto, os problemas nacionais não são debatidos. À direita ou à esquerda, desenha-se um deserto de idéias, projetos e debates. As ‘nossas’ causas comuns são recalcadas para o poço fundo desta nação que parece sonhar deitada em Brasília esplêndida, longe dos problemas que há dezenas de anos permanecem os mesmos. Mais uma vez as questões da infância e da juventude assassinada e desamparada não são trazidas para o debate, no momento em que cada candidato deveria assumir dizer por quê e como quer nos representar na defesa de nossas causas comuns. Uma rara exceção, diga-se de passagem, é o senador Cristovam Buarque que no último mês publicou dois instigantes artigos num jornal de grande circulação sobre educação fundamental, mostrando que é possível sim transformar nossa triste realidade educacional pública em algo de qualidade. Basta querermos.

Fico me perguntando qual será o caminho para que um querer coletivo surja, tão intenso e vigoroso que impossibilitaria aos candidatos e políticos em geral oferecerem suas mal-ajambradas justificativas para a situação em que a infância e juventude brasileiras ainda se encontram. Seria uma grande vontade nacional em torno dessa causa comum que é a infância e a juventude brasileiras, que tornaria inexorável o projeto de educação de qualidade, saúde e aportes culturais para TODAS as crianças e jovens. Uma vontade nacional que se sustentasse além da transitoriedade das notícias sobre crianças e jovens sem escola, no tráfico ou na prostituição.

Creio que alguma coisa desse querer já existe vicejando ‘sem lenço e sem documento’ aqui e ali. Na desesperança de muitos jovens com a política tradicional e com os políticos, vejo alguns indícios desse querer. Nas pesquisas que conduzo sobre participação política de crianças e jovens, embora haja desesperança e desgosto com a política tradicionalmente conduzida que não traz mudanças, há o inconformismo e a revolta com o que se vê ao redor. E muitos jovens partem para a ação nos movimentos sociais levando à frente a bandeira da mudança social, ainda que circunscrita a um agir local. Muitos deles, estão dando aulas em cursos pré-vestibulares comunitários, fazendo parte de projetos sociais e culturais para crianças e adolescentes pobres, abandonados ou em conflito com a lei.

Mas, são vozes e ações dispersas, invisíveis à nossa percepção coletiva de nós mesmos. Além dessas iniciativas de muitos jovens, há certamente outras em que a indignação deu lugar ao embate pela transformação. Não sabemos, no entanto, quantos inconformismos correm por aí, escondidos sob o árduo trabalho de construção lenta e anônima. Talvez a invisibilidade desse inconformismo transformado em ação restrinja a adesão de muitos outros à causa comum da infância e da juventude em nosso país. Sem que haja notícia desse inconformismo, dá-se a impressão de que tudo que está aí, sempre esteve assim, e provavelmente vai continuar do mesmo modo. Não se tornando visível o que efetivamente muitos fazem pelas crianças e jovens no Brasil, outras vozes revoltadas e indignadas não se juntam ao coro, e não engrossam o movimento em prol da transformação dos cenários de horror da nossa infância e juventude. Mais ainda, ao não se tornarem conhecidas as muitas ações que estão em curso, elas também não podem ser questionadas no seu modo de fazer e nas suas finalidades. Significa que, se os cenários de brutalidade em relação a crianças e jovens, que são mostrados reiteradamente, não se fazem acompanhar da visibilização das múltiplas ações que de fato existem combatendo a injustiça e as desigualdades, não se torna possível passar da emoção passageira ao inconformismo produtivo.

De onde brotarão outros inconformismos? De onde virão outras ações que possam se juntar às daqueles que já lutam – invisivelmente - para transformar a situação para lá de calamitosa (e criminosa)?

A percepção de que a situação das crianças e adolescentes em nosso país é revoltante não pode prescindir do ato reparador. Significa que é absolutamente necessário que se siga a essa comoção o levantamento, a observação e a discussão do que se faz a esse respeito. Se não, é como se a mensagem fosse de que as cenas de sofrimento servem apenas como espetáculo de horror.

Existem, de fato, ações e projetos em andamento – realizados por jovens e adultos – que, para além das pífias ações governamentais, põem em curso a reparação de uma situação que tem que ser transformada. Poder entrar em contato com tais projetos e ações significa poder se dar conta de quantas coisas podem ser efetivamente feitas, uma vez que muitos já estão fazendo, e poder escolher entre ficar parado (mesmo que comovido) ou fazer algo. Significa também que conhecer as múltiplas ações em prol da transformação da realidade coloca publicamente o debate sobre a forma e os objetivos de tais ações. Em resumo, coloca em questão a nossa causa comum que é a infância e a juventude brasileiras.

Poder ver que há ações possíveis em relação ao que nos oprime como problema comum – o de que grande parte das crianças e adolescentes brasileiros não têm outro destino senão no tráfico, nas instituições penais, na prostituição etc - significa poder re-ordenar alianças e adesões, na medida em que outros segmentos da sociedade, antes comovidos mas inertes, poderão saber por onde começar. Assim, todos aqueles que não sabem que muitas ações podem e são empreendidas, não deixarão de aderir à causa comum da infância, se assim o escolherem; para os muitos que não sabem que projetos existem e são tocados graças à teimosia e ao irrenunciável ideal de alguns, a comoção passageira poderá eventualmente produzir a indignação firme e solidária capaz de dar força àqueles movimentos já existentes; para os muitos que não sabem quanto se pode fazer, a inércia e a luta pela sobrevivência não será mais impedimento para que possam agregar valor ao movimento de transformação.

O ato reparador em relação às crianças e jovens já existe o que torna mais fácil a adesão ao que já foi iniciado. O que parece ser, portanto, indispensável é a visibilização e o debate público das ações – que embora insuficientes, podem fazer brotar um querer coletivo de transformar a realidade provocando em nós, mais do que comoção, um inconformismo alinhado e produtivo.