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Como fazer o dia nascer feliz? Conversa entre João Jardim e Solange Jobim e Souza

João Jardim *
Solange Jobim e Souza **

Certos filmes são especiais pelo fato de construírem uma narrativa que toca o lado afetivo do espectador e o estimula a pensar, pela razão, questões que devem estar em pauta. Este é o caso do filme ‘Pro Dia Nascer Feliz’ que entrou em cartaz recentemente e tem despertado o interesse de um público diversificado, pela atualidade das questões sociais que vem à tona, por meio do tema educação, mas, em especial, porque este filme convida o espectador não apenas a pensar, mas a se sentir cúmplice, ou melhor, desejar entrar em cena.

Estar na cena aqui não é, com certeza, recontar a mesma história, mas, ao contrário, perceber o quanto precisamos atuar para mudar a história da educação no Brasil. Foi com o sentimento de que é preciso entrar em cena na vida e continuar o debate que o filme propõe, que aceitei o convite do Observatório da Infância e da Adolescência para entrevistar seu diretor, o cineasta João Jardim. Logo no primeiro contato, João concordou com a idéia e marcamos nosso encontro para o dia 26 de fevereiro, no Departamento de Psicologia da PUC-Rio. Iniciamos a conversa com o desejo mútuo de falarmos não sobre o filme propriamente, mas sobre o que esse filme permite enxergar da vida que flui nas escolas deste imenso país, submerso em contradições.

João Jardim – (…) Eu acho interessante falar sobre o que não está no filme, que é um pouco a reflexão sobre ele e que tem a ver até com o destino dos personagens um tempo depois.

Nossa conversa teve como fio condutor questões tipo: O que são e o que pensam os jovens entre 14 e 17 anos e os adultos que contracenam com eles na escola e na família? Qual tem sido o lugar ocupado pela educação e seus protagonistas em um país cindido pela desigualdade? Que contribuições os temas educação, escola e família trazem para a compreensão da violência urbana, da impunidade e da maioridade penal? Como fazer da escola um lugar possível de realização individual e coletiva? Como educar o educador? Que alternativas são viáveis para interferir nesse imenso estado de desamparo em que se encontram os jovens, os professores e as famílias? O cinema, especialmente o documentário, é capaz de desencadear a conscientização política?

Uma questão que pontuou a entrevista em diferentes momentos diz respeito à linguagem do próprio gênero documentário no contexto cinematográfico. Indaguei se o processo de realização deste documentário não poderia ser comparado à tarefa do pesquisador em ciências humanas. Ou seja, será que o diretor João Jardim, concluídas as filmagens não se deparou com surpresas, com histórias imprevisíveis que poderiam até mudar o foco das questões planejadas, mesmo que o roteiro contasse com um fio condutor preciso? Tive a sensação de que ao longo do processo foram se revelando questões não imaginadas e que apareceram naquele contexto específico. Enfim, buscando encontrar um fio condutor a partir do qual pudéssemos trocar dúvidas e substituir certezas começamos nossa conversa.

Solange Jobim – O que mais surpreendeu no processo de filmagem? Ou melhor, que revelações contribuíram para mudar seu modo de entender a educação e a juventude deste país?

João Jardim – Eu ouvi várias vezes, diversas pessoas. Todo o processo de realizar o filme foi muito lento. Eu ia às escolas, ficava lá, conversava, eu ouvia, conversava com um… Conversei com muitos jovens que não puderam entrar no filme porque já eram marginais.

(…) Quando eu comecei a fazer o filme, eu tinha uma opinião completamente a favor sobre a questão da progressão continuada. Mas quando eu comecei a freqüentar as escolas eu vi que tem um problema sério com relação à progressão continuada que é a questão da impunidade. A progressão continuada é o atestado da questão da impunidade. Lógico que guardadas as devidas proporções – a princípio eles não são mais reprovados se não estudarem – então isso já cria uma deturpação de valores muito forte dentro da escola à medida em que isso também afeta muito profundamente o professor… Porque ele perdeu a autoridade, o professor gosta de autoridade e perdeu a autoridade de certa maneira. Mas tem uma coisa positiva, porque não tem mais aquele, “ah, vou te reprovar e tal”, aí o aluno não tem como se recuperar porque o professor já odeia ele mesmo, então vai reprovar. Aquela relação melhorou por um lado, mas criou uma deturpação. Por isso é que eu digo, não é que eu seja a favor ou que seja contra ela, mas ela criou uma deturpação de valores para o adolescente, muito confusa. O que importa é o entendimento dele da vida. Fiz uma coisa certa vou passando de ano e vai dando tudo certo, agora não tem mais isso, não precisa mais fazer o certo dentro da escola entendeu? Então confundiu demais. É o aluno que estuda em igualdade de condições com aquele que não estuda, então isso cria uma coisa de que não tem lei. Não tem lei, não tem punição…

Solange Jobim – As cenas que apresentam os depoimentos de alguns jovens infratores, falando sobre seus atos, são muito fortes e nos deixam perplexos. Refiro-me especialmente à fala de uma jovem da periferia de Brasília, entrevistada por você no presídio, que matou a facadas uma colega dentro da escola. Como foi para você enfrentar essa realidade, editar essas imagens e devolver esse tema para a sociedade?

João Jardim – Essa questão da impunidade na vida deles é uma coisa generalizada, é como eu percebo. Quando a menina fala aquilo lá que ela falou – ela na verdade está dentro da periferia de Brasília – a realidade é essa, entendeu? Não tem lei, eles acham que o fato de ficarem três anos presos não é punição. Como é que ela vai entender que está fazendo uma coisa errada dentro de um todo perverso? Se do lado dela tem um vizinho que matou o outro e não foi preso? Se no universo deles não tem muita lei e dentro da escola você também não tem. Na verdade é todo um universo muito sem lei, muito sem limite.

Solange Jobim – Em entrevista à Revista de Domingo do jornal O Globo (25.02.2007), o juiz da Infância e Juventude de Porto Alegre, Leoberto Brancher, defende a necessidade de reinventarmos o nosso modelo de Justiça e defende uma proposta que ele denomina de Justiça Restaurativa, como a única saída para a violência, por unir disciplina e assistência para responsabilizar jovens infratores. Entre outras ações, a proposta ressalta a necessidade de se confrontar o infrator com a dor das conseqüências do crime, ou seja, fazer o infrator tomar consciência do seu ato. Qual a sua posição frente a este tema?

João Jardim – (…) Eu achei muito apropriada a colocação dele (Leoberto Brancher). Eu acho que o que ele coloca é o certo. Eu acho que tinha que aumentar a quantidade de anos que eles ficam presos, eu não acho que deveria diminuir a idade penal. Na minha opinião deveriam ser sete, oito anos, porque três pra eles não é nada … Mas a questão maior é a questão do limite, de você sinalizar… É preciso sinalizar de maneira mais clara para o menor e para o outro que vai aliciá-lo, de que vai acontecer alguma coisa com ele. Quando ele sai pra roubar ele não está achando que vai matar ninguém, ele está achando que ele vai cometer um furto, e quanto tempo ele vai ficar preso se ele cometer um furto? Isso pra ele é até um alívio, sair daquele universo ali que ele mora.

(…) Ele não está achando ruim ir preso lá pro Padre Severino, eles não tem essa noção de que é ruim. Eles não têm, a gente acha que é ruim porque a gente tem a nossa casa, nosso quarto direitinho, bonitinho, mãe, pai. Eles não têm pai, o pai já está preso, também tem muito isso: os filhos imitam os pais que estão presos. Enfim, a minha opinião é um pouco essa. Deveria haver um entendimento de que nos bolsões de criminalidade eles não têm lei, e o Estado deveria dar para eles uma arma para eles se defenderem de quem estaria querendo levá-los para o crime, e no momento em que não acontece nada com eles você está dando força para quem está querendo aliciá-los, entendeu? “Vamos lá, vamos lá, vamos lá, não vai acontecer nada não”. É como o garoto fala no filme: “… hoje não tem nada pra fazer, vamos lá roubar”. Essa é a melhor frase do filme, porque é exatamente isso, ele não pensa: “ah não, eu vou lá roubar…”. Ele não tem nem noção de que pode acontecer alguma coisa com ele, não é que ele não tenha noção porque ele seja um alienado, é porque ali, dentro do universo deles, ficar um ano preso não é nada, é ótimo, entendeu? … Na comunidade deles não tem divertimento, não tem o que fazer, eles não têm dinheiro, enfim, vocês sabem de tudo isso. Eles estão tolhidos de tudo aquilo que a sociedade oferece de consumo, mas aí vem sempre essa questão, quem faz a lei, quem discute a lei é a classe média. Somos nós que vivemos dentro de um universo muito interessante, muito bom, e que a gente acha que ficar preso é ruim… Não que eles não achem, lógico que eles acham… Mas eles também não têm a sensação de que está errado, porque eles estão inseridos num universo em que tudo já está subvertido.

Solange Jobim – Você se deu conta então que os valores que circulam entre aqueles jovens da periferia não têm nada a ver com os valores que circulam no centro, no nosso contexto social e aí está uma grande questão. Como fazer valer os valores humanistas, o compromisso com o outro, o respeito pelo outro, se eles próprios não convivem com essa dimensão de respeito em nenhum momento?

João Jardim – Eu fiquei muito impressionado na semana retrasada. Houve um debate em São Paulo, e aí no final do debate veio me procurar um diretor de uma escola lá de São Paulo, esqueci o nome, mas é uma das melhores escolas de São Paulo, e aí surgiu esse assunto. Ele virou pra mim e falou assim, “mas é, você tem toda razão, o conselho de educação aqui de São Paulo sou eu”, aí ele falou, “o diretor do colégio ‘x’, do colégio ‘y’, do colégio ‘z’”, sabe? Só diretor de colégio particular, entendeu? E ele falou assim, “e não vai mudar porque é uma coisa política, é uma coisa de prestígio político, ninguém vai botar aqui dentro o fulano e o sicrano e o beltrano da escola pública e de não sei onde”, você está entendendo? Porque muitas vezes são coisas políticas e que não se abrem para incluir nessa discussão as pessoas menos favorecidas para que elas possam provocar um debate ou algum tipo de mudança. O que acontece é isso, você tem realmente um núcleo muito forte no Brasil de políticos, de cargos políticos, fazendo as políticas públicas que não se abrem para uma entrada mais eficiente de pessoas da periferia. É uma coisa política mesmo, enfim, por aí vai, em todas as escalas você tem isso, mesmo nas pessoas bem intencionadas…

Solange Jobim – Uma outra questão que eu vejo é: fazer desse filme um mote para se debater sobre esses problemas, em determinados espaços, não seria também aproveitá-lo com vistas em ampliar esse espaço de fazer política com o cinema? É possível isso? Como criar estratégias pra fazer política com o cinema? Qual o lugar que o cinema pode ocupar?

João Jardim – Assim, eu acho que é relativo, vamos dizer assim. Eu acho que é muito difícil no Brasil, primeiro pelas formas de patrocínio que você tem hoje em dia que realmente inibem os filmes mais polêmicos que poderiam ser mais interessantes, porque é difícil você conseguir um patrocínio de alguma empresa para um filme mais político ou que pudesse ser mais instigante, porque as pessoas têm medo de se comprometer com o que o cara vai dizer. Então eu acho que essa política de patrocínio no Brasil é muito restritiva pra documentário, de certa maneira. Você não pode… “Ah, vamos fazer um filme sobre os mensaleiros”, ou fazer um filme sobre como funciona a Câmara dos Deputados, por exemplo, ou sobre qualquer tema mais polêmico, tráfico de drogas… As empresas não vão querer patrocinar. Tudo bem, a Petrobras até pode patrocinar, mas pra você fazer um trabalho bom você precisa ter vários patrocinadores, entendeu? Então eu acho que nessa forma de patrocínio que você tem hoje em dia é difícil, tanto que o próprio ‘Pro Dia Nascer Feliz’ foi um processo muito lento de conseguir o dinheiro, foi sempre muito árduo, porque você nessa política de patrocínio que tem no Brasil, nem acho errado não, tem várias vantagens, várias coisas boas, mas você concorre com outros filmes com muito mais atrativos comerciais, então quando você inscreve um projeto numa concorrência e você tem um outro filme com atores mais famosos, ou com temas mais sedutores… Um documentário sobre o Vinícius de Morais, por exemplo, ou um documentário sobre adolescentes na escola, vão optar pelo do Vinícius. Então acho que é difícil, não tem muito esse caminho no Brasil. Deveria se ter mais esse tipo de patrocínio, é uma pena. Eu até penso isso hoje em dia, a gente não tem uma televisão no Brasil…, porque fora do Brasil é feito pelas televisões, mesmo quando passa no cinema é produzido pelas televisões. Nos Estados Unidos, são empresas que têm essa necessidade de fazer esse tipo de documentário, então elas alocam uma verba para isso e o produtor complementa com outras verbas e fazem uma coisa para o cinema e que depois passa naquela televisão imediatamente, entendeu? Mas é meio co-produzido pela televisão. Solange Jobim – Isso seria uma boa alternativa?

João Jardim – É uma ótima alternativa, mas precisa ter essa história. É difícil, é complicado, porque como a gente no Brasil quase só tem a Globo. A Globo News pode vir, mas é um processo muito lento, e também é uma empresa muito visada … Pegar um assunto muito polêmico… Ela exibe quando trazem. O tema lá dos menores, delinqüentes e tal, ela exibiu lá, o filme Falcão. Eles exibiram uma parte grande, mas ela produzir aquele filme, entendeu? Para eles é muito arriscado. Na verdade isso seria mais para uma tevê educativa, ou até para a Globo News mesmo, mas eles teriam que ter mais envergadura financeira. Mas seria fundamental, acho que seria muito importante pro Brasil a gente poder produzir filmes com viés político forte, reflexivo, porque a gente vive situações que a imprensa explora bem, só que não é papel da imprensa analisar aquilo de uma maneira mais… A imprensa não pode… O que você escreve hoje já não vale nada amanhã e o cinema tem uma coisa que ele vira um documento, que pode ser visto e revisto. O jornal de ontem, daqui a três semanas já vale muito pouco.

Solange Jobim – Você estava falando do filme documentário ‘Falcão’, e uma coisa que me chamou atenção na época em que passou uma parte do filme na televisão, passou no Fantástico, horário nobre, então, muitas pessoas começaram a discutir no dia seguinte o assunto. Ao mesmo tempo, você percebe que a televisão esvazia o conteúdo das questões graves, em virtude da forma como apresenta o assunto. O próprio Fantástico é um programa muito polêmico pela forma mais superficial e ligeira com que trata uma diversidade de temas ao longo do programa. Segue a abordagem jornalística em que nada é mostrado para durar, sedimentar, apenas informar. Mas não se pode negar que é um espaço de transmissão onde você garante que milhares de pessoas vão assistir. Se botar no Canal Brasil quase ninguém vai ver… Mas a questão maior é de como tudo isso é recebido pelo público em geral. Não há garantia alguma de que aquilo está gerando um aprofundamento, uma consciência do público sobre o tema. No que diz respeito ao jovem infrator, ao jovem que está no crime, a questão é ainda mais complexa, no meu entender. Como é que esses jovens se vêem, como é que eles entendem aquelas imagens? À medida em que se vêem na televisão, não seria essa uma maneira negativa de dar visibilidade aos jovens? Eles acabam se vendo ali como foco de atenção da mídia, mas em outros momentos da vida não são absolutamente nada para a sociedade. São anônimos e invisíveis. O que isso gera na cabeça desses jovens?

João Jardim – Mas eu acho que a sociedade, a televisão… , o jornalismo tem esse problema, ele vive da notícia, do gancho. A Globo até força os ganchos, eu acho. Essa questão que você está falando, ela é real, porque na verdade, uma outra coisa que eu percebia também durante o processo de realização do filme e que me impressionou muito foi a falta de conhecimento do professor sobre o tema e a questão da necessidade que os jovens têm de serem vistos e notados como protagonistas de alguma coisa, que é um pouco o que o Luiz Eduardo Soares fala. De que eles vão pro crime porque pelo menos quando eles baterem na janela do carro você vai prestar atenção neles, que se eles estiverem pedindo dinheiro você nem olha. Mas isso permeia realmente as relações deles o tempo todo, então isso eu concordo com você que acontece esse tipo de coisa, porque eles se vêem ali. Então se eles precisam daquilo dali para aparecer, então aquilo é bom, porque o que eles querem o tempo todo é realmente serem reconhecidos, aparecer. O que eles estão procurando é afirmação. É sobressair perante o grupo, é ser aceito perante o grupo de uma maneira especial. É a história do Douglas. O Douglas fala isso: que ele vai ao baile, pega a arma, passeia com a arma no baile porque é legal, porque as pessoas vão olhar para ele, vão respeitar ele porque ele sabe segurar a arma (…). Ele acaba não indo pra criminalidade por causa do filme lógico, porque agora ele virou ator do filme, então não precisa mais, mas principalmente porque tem a banda e com a banda ele é um destaque. Com a banda ele consegue as meninas, com a banda ele tem mais respeito perante as pessoas. A gente precisa buscar maneiras deles sobressaírem sabe? Porque é isso que eles estão buscando. A menina mata a outra por quê? Por que quê ela mata a outra na escola? Está ali, é lógico, está no subtexto, o que ela queria é que todo mundo visse. (…) Então é essa a questão, eles querem fazer coisas pelas quais eles vão ser admirados, e no caso, admirado entre aspas, por isso que eu te falo que não tem lei no universo que eles habitam. Então matar não é grave, lógico que existe um fator meio doente mesmo nesse processo. Mas aí você não sabe dizer se a pessoa está doente, mas a sociedade em que ela está inserida também está doente. Porque é tão comum eles falarem de crime?

Solange Jobim – O que significa estar frente a frente com o drama da invisibilidade dos jovens? E os professores, como se posicionam? É possível responder com ações educativas eficazes ao apelo dessas imagens tão verdadeiras? O que pode ser feito?

João Jardim – As pessoas perguntam pra mim assim, “ah, o que quê você imagina que seja uma solução?” Não tenho que saber isso, mas não posso deixar de dar uma resposta porque as pessoas perguntam. Então a minha reflexão e a minha angústia vão muito ao encontro dessas duas questões: de uma delas já falamos aqui, a questão da invisibilidade do jovem e falta de limites, falta de lei; a outra questão é a falta de preparo do professor para o que ele vai enfrentar dentro da sala de aula. Como isso é devastador em todos os lugares, eu penso assim. Percebi todas as professoras falando sobre isso. Para a Celsa é um caso extremo porque realmente ela tem uma fragilidade emocional que faz com que ela não agüente, mas também porque ela é muito sincera, ela não é cínica em relação àquele processo dela ali na escola. Mas o que eu conversei muito com as pessoas na época em que eu fazia o filme e que me impressionou muito nas universidades é não existir realmente essa preocupação de preparar para isso, não é preparar para ensinar. A Celsa comprova um pouco isso que eu digo, a professora fala no filme: “não, os professores estão bem preparados, eles não estão preparados é para lidar com os alunos”. A essa afirmação, muitas vezes a platéia responde achando um absurdo: “mas como que o professor não está preparado para lidar com os alunos se o que ele tem que fazer é lidar com os alunos?”. Mas eu acho que aquilo dali é a mais pura verdade, porque na verdade o despreparo da Celsa é totalmente psicológico.

(…) Durante o processo de gravar o filme, as pessoas perguntavam pra mim, os professores: “mas como é que você faz se o aluno manda você ‘tomar no cu’ ”? Que resposta dar? É essa a questão, e ouvi isso tantas vezes, de tantas pessoas diferentes, de tantos lugares, de forma diferente. O palavrão é usado mais na periferia, mas em vários lugares eu ouvia a mesma questão, do aluno maltratar o professor psicologicamente e do professor não ter as ‘armas’ - lógico que alguns têm - para lidar com isso, mas acaba minando todo o processo dele dentro da sala de aula, que é o caso da Celsa, que abandonou. Como fazer o professor entender que não é pessoal, como mudar o modo de agir do professor frente a este aluno. Isso foi uma das coisas que mais me incomodou durante o processo de filmagem. Uma boa professora, preocupada com os alunos e que não conseguiu resistir a essa agressividade, a esse dia- a- dia tão difícil(…).

A violência que eu percebi dentro das escolas, para mim ela sempre estava relacionada à questão da família. Da família, quero dizer assim, que eles reproduziam dentro da escola o universo que eles tinham dentro da casa deles, entendeu? Todas as pessoas que eu vi protagonizarem situações violentas dentro das escolas tinham famílias com histórico violento…

Solange Jobim – Mas, afinal, o que falta ao professor? Como formar ou preparar o professor para lidar com a realidade de nosso contexto social? Quem educa o professor? Estas perguntas são para todos nós, que estamos inseridos neste cenário e nos sentimos comprometidos com a angústia que é compreender essa situação dramática, mas ir além, saber como agir para mudar esta realidade.

João Jardim – Você hoje em dia ainda mantém uma atenção muito grande na questão do conteúdo e uma atenção muito pequena na questão da forma, enquanto que isso está provocando uma falência muito grande. A questão da forma, de como se relacionar dentro da escola, deveria ter um percentual muito mais importante do que tem hoje em dia, não mais do que o conteúdo. Mas para essa questão – porque tudo isso deveria ser abordado e discutido – não é nem que tenha uma fórmula, não acho que você possa dar a fórmula para o professor, de jeito nenhum, mas isso deveria ser assunto, essa questão da didática, do pesquisado, do discutido. Também me deixa muito constrangido quando as pessoas falam: “Ah, mas os alunos não estão interessados porque estão interessados em outras coisas”. Mas eles são assim, você não vai mudar o mundo, você não vai mudar os alunos, então tem que preparar as pessoas pra isso, para entrar em uma sala de aula que ninguém vai querer ouvir o que você está dizendo, entendeu? É difícil, é uma profissão muito difícil, mas eu acho que se trabalhasse melhor essa questão da forma… É a mesma coisa, os professores diziam pra mim assim, quando eu ia conversar com eles: “Não, a gente vai lá faz aqueles seminários aí eles falam pra gente que a gente tem que envolver os alunos, participar, falar da realidade deles e não sei o quê”. Isso tudo a gente já sabe, mas como fazer isso, entendeu? Como fazer isso na prática? Fala-se muito de uma teoria muito bonita, de como deveria ser, mas ninguém efetivamente tem uma metodologia de como fazer. Todo mundo já sabe como deve ser, mas ninguém sabe como fazer. Mas, enfim, também nem sou eu quem tem a resposta, mas acho que deveria se pesquisar um pouco.

Solange Jobim – Já que entramos por questões tão delicadas e polêmicas, seria interessante ouvir de você sobre as implicações éticas de se realizar um filme como esse. Você entrevistou jovens de 14 a 17 anos, menores de idade. Que implicações éticas você encontra para fazer um filme com esse público alvo, principalmente porque nesse tipo de narrativa cinematográfica os jovens ali estão representando eles mesmos, ou seja, os jovens estão falando deles próprios, da sua intimidade, dos seus segredos… O quê isto significa pro jovem? Na hora da edição quais os critérios que direcionam a escolha das imagens?

João Jardim – Isso é totalmente determinante, mas isso foi determinante na hora da escolha dos personagens, inclusive aconteceu de eu ter que abandonar um ou outro porque eu vi que eu não poderia usar no filme, mas na verdade antes eu já tinha que ver, já tinha que escolher pessoas que eu pudesse exibir sem danos a elas entendeu? Porque o tempo todo havia essa preocupação ética. (…) Você não pode trair o personagem, senão destrói o filme. Não só destrói a pessoa quanto o filme também, porque você está vendo e fica com raiva do filme.

Solange Jobim – Alguns documentários seguem um estilo mais jornalístico, quer dizer, pretendem apenas passar informações sobre determinado tema. Certamente o seu filme vai além, porque cria uma atmosfera intimista com os personagens. Como você explicaria o sucesso e a aceitação deste tipo de narrativa cinematográfica pelo público nos dias de hoje? O público está mais afeito a experimentar o efeito da representação de si nas telas? Podemos falar de um reality show? É possível a transformação social a partir do cinema? Ou seja, fazer política utilizando a cultura de massa como veículo?

João Jardim – Eu acho que há duas questões, a primeira é que não tem muita gente que faz esse tipo de documentário. Porque na verdade é uma coisa difícil de você fazer. Um documentário que procura falar da alma das pessoas de uma forma mais profunda, vamos dizer assim. Acho que o Coutinho, ele também tem esse enfoque, mas eu acho que existe uma mistura, acho que tem um pouco essa coisa de mostrar a intimidade, mas é muito diferente porque na verdade é assim: quando você tem um ponto de vista, no processo da edição você até tira fora coisas mais íntimas para preservar as pessoas, entendeu? Para que elas sejam mais úteis, entre aspas, dentro de uma idéia que o filme está querendo construir, então o caminho principal do filme não é esse de mostrar a intimidade delas, na verdade é o contrário, ele quer mostrar aquilo que é mais pessoal e que interessa ao tema e não simplesmente mostrar toda e qualquer intimidade só para poder mostrar. No caso deste filme eu vejo que ele não tem nada que seja só para mostrar alguma intimidade. Ele está bem construído dentro desta idéia (…). Aliás, acho que é isso que diferencia o jornalismo do cinema, é essa profundidade maior, essa questão de procurar uma coisa que não é dita normalmente na televisão, não é dita daquela forma.

Solange Jobim – No filme, eu percebo uma tensão muito positiva entre ‘o mostrar’ e ‘o dizer’. Gostaria que você comentasse especialmente duas cenas que para mim foram excepcionais. A primeira é quando você coloca o relato da menina presidiária com a imagem da chuva. A chuva substitui para mim o choro que está ausente na fala da menina e presente na escuta de quem assiste à cena. É muito triste ouvir aquele relato. Mas eu senti que aquela imagem me permitiu ouvir o que estava sendo dito, apesar do horror do relato. Permitiu escutar contextualizando o que estava sendo dito pela menina na experiência de vida dela. Em outra cena, igualmente bela, as crianças e os jovens fixam o olhar em direção ao espectador, imagem sem verbo explícito, mas um olhar que invade, pergunta, indaga, interpela o espectador a ser responsável, a responder ao apelo dos jovens. Com essas imagens saímos definitivamente do plano da informação e entramos no plano da estética. Você concorda?

João Jardim – Mas eu acho que o cinema tem muito isso sabe? Essa é uma função que o ‘Janela da Alma’ já tinha, e que é assim, a gente está falando de uma coisa que é eminentemente imagética, mais do que informacional. Você consegue fazer um filme só com imagens, e só com palavras é muito mais difícil. Mas eu acho que essa questão é fundamental na hora de construir um filme, é imaginar que imagens podem estar aparecendo, porque na verdade não é o que está sendo mostrado, mas é o que você está pensando. É como um quadro, não é o que o quadro está mostrando, mas o que quê ele está fazendo você sentir, o cinema tem muito isso e eu tento trabalhar isso o máximo possível. Eu acho que essa questão, para mim, é o básico do cinema. Porque é essa questão do quê está na tela ter um outro significado que não aquilo que está sendo dito. O tempo todo eu tento trabalhar com isso e acho que isso é fundamental no processo cinematográfico e que até é pouco estudado, mas para mim é o que mais me interessa. É essa construção que eu acho que no ‘Janela da Alma’ tinha muito, e acho que é, justamente, onde esses dois filmes se unem. Que é na forma como eles falam de coisas que faz você pensar em outras coisas. Mas isso é do meu trabalho, cada um faz um tipo de trabalho.

Solange Jobim – Obrigada pela entrevista.

João Jardim – Legal, achei boa a conversa também.

 

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* João Jardim é cineasta. ‘Pro Dia Nascer Feliz’, vencedor de nove prêmios, é o segundo longa-metragem do diretor, seguindo-se ao filme ‘Janela da Alma’.

** Solange Jobim e Souza é Doutora, Professora do Departamento de Psicologia da PUC-Rio e da Faculdade de Educação da UERJ; Pesquisadora do CNPq.