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O anonimato da dor: a quem serve a redução da maioridade penal?

Esther Maria de Magalhães Arantes *

No dia 02/02/07, o menino João Hélio Fernandes Vieites, de apenas 6 anos de idade, foi brutalmente assassinado no Rio de Janeiro por um grupo de jovens, dentre os quais um adolescente. A morte de uma criança é sempre um sinal de que estamos falhando na tarefa de proteção à infância, nos diz o Desembargador Siro Darlan, em Carta Aberta veiculada na internet.

Não é natural morrer na infância, principalmente em circunstâncias como esta, e não podemos deixar que este momento de dor e comoção nacional nos exima de buscar soluções efetivas que certamente passam pela análise das causas da violência. Assim, ao mesmo tempo em que manifestamos total repúdio ao ato que vitimou a criança e sua família e chocou a sociedade brasileira, preocupa-nos o debate que vem se instalando no país para o endurecimento das leis e a redução da maioridade penal, bem como os termos nos quais este debate vem sendo feito, aplicando-se aos adolescentes as categorias de anormais, monstros, degenerados, incorrigíveis e não-humanos.

Queremos acreditar que apenas por desconhecimento da realidade retratada no Mapa da Violência de 20061, pode alguém acreditar que os adolescentes são os responsáveis pela situação de criminalidade a que chegamos no Brasil. Acaso não está lá demonstrado que o Brasil é um dos países que mais mata seus adolescentes e jovens em todo o mundo? Também não está retratado, nos inúmeros relatórios existentes sobre o tema, que a maioria dos atos infracionais que levam os adolescentes a receberem medidas de privação de liberdade no Brasil não envolve crime contra a pessoa?

Queremos também acreditar que apenas por desconhecimento das mazelas existentes nas prisões brasileiras, uma das piores do mundo, pode-se imaginar que o rebaixamento da idade penal seja solução de alguma coisa. Ao contrário, esta talvez seja a solução mais simplista e consequentemente, a mais desastrosa. Não que os estabelecimentos destinadas à privação de liberdade dos adolescentes encontrem-se em melhores condições que as prisões dos adultos. Em Inspeção Nacional às Unidades do Sistema Socioeducativo, realizada em ação conjunta da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Conselho Federal de Psicologia (CFP) em 15/03/2006, foram constatadas situações de extrema violação dos direitos dos adolescentes, confirmando uma realidade já sabida e inúmeras vezes denunciada: superlotação nas unidades, maus-tratos, ociosidade, precariedade ou ausência dos projetos socioeducativos e sofrimento mental, dentre outros problemas.

Como resposta a esta situação histórica existente nas unidades, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) aprovou em 2006, após longo debate, o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), que prevê novas diretrizes de funcionamento para a internação e cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto, propondo sua imediata implementação, bem como demais políticas públicas da infância e da adolescência, em cumprimento ao que determina o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Assim como o CONANDA, em Carta Circular datada de 13/02/2007, o Fórum Nacional de Defesa da Criança e do Adolescente (FNDCA) e os 27 Fóruns Estaduais DCA’s, bem como suas entidades filiadas, além de registrar solidariedade à família do menino João Hélio, situação esta ‘infelizmente vivida por muitas famílias que, anônimas, choram a dor da perda de seus filhos’, reivindicam a implantação imediata do SINASE, bem como ações preventivas, garantindo recursos para as políticas públicas voltadas para as crianças e os adolescentes, políticas que garantam melhoria na qualidade de vida deles, de suas famílias e de toda a sociedade.

Apesar dos diversos posicionamentos contrários à redução da idade penal por entidades de classe e de defesa de direitos humanos2, mas respaldados em pesquisas de opinião que demonstravam ser a população favorável à redução, no dia 26 de abril de 2007, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou, por 12 votos a favor e 10 contra, o substitutivo do senador Demóstenes Torres, que altera o art. 228 da Constituição Federal, reduzindo a maioridade penal de 18 para 16 anos, nos casos de crime considerados hediondos ou a estes equiparados, como o tráfico de drogas. O substitutivo aprovado foi redigido a partir de seis propostas de emenda à Constituição (PEC) que já tramitavam na Casa e que deverá ainda ser submetido ao plenário do Senado, em dois turnos, para posterior envio à Câmara dos Deputados, também para votação em dois turnos.

Apresentaram voto em separado, pela manutenção da idade penal em 18 anos, o senador Aloizio Mercadante (em 27/02/07) e a senadora Patrícia Saboya (em 26/04/07), sustentando, dentre outros, os seguintes argumentos: 1) a maioridade penal fixada na Constituição Federal constitui cláusula pétrea e está de acordo com padrão adotado pelos mais importantes documentos internacionais sobre o tema, ratificados ou apoiados pelo Brasil; 2) o rebaixamento da idade penal terá pouco impacto sobre os índices de criminalidade, na medida em que mais de 90% dos crimes são praticados por adulto, sendo adolescentes e jovens as maiores vítimas da violência; 3) o rebaixamento da idade penal importará na participação definitiva de adolescentes em grupos do crime organizado existentes no sistema penitenciário, no afastamento das oportunidades de conclusão dos estudos e de profissionalização e na ausência de apoio terapêutico para reverter a conduta transgressora, contribuindo também para o aumento da população carcerária e o conseqüente agravamento da carência de vagas no sistema penitenciário brasileiro, considerado um dos piores do mundo.

Como alternativa para combater o aumento de atos infracionais praticados por adolescentes propõem, em consonância com o CONANDA e o FNDCA, a imediata e total implantação do SINASE, que prevê a formação continuada dos agentes socioeducadores; a priorização das medidas em meio aberto; a reforma das unidades de internação, mediante parâmetros pedagógicos e arquitetônicos; e a mobilização das comunidades e da imprensa para o acompanhamento e a resolução de um problema que é de toda a sociedade brasileira.

Além dos aspectos apontados pelos senadores, chamamos a atenção para um outro, que atinge diretamente os profissionais que compõem a chamada ‘equipe técnica’ das Varas da Infância e Juventude, que é a previsão que faz o substitutivo aprovado de uma ‘junta técnica’ para decidir sobre a existência de discernimento nos menores de 18 e maiores de 16 anos: “somente serão penalmente imputáveis quando, ao tempo da ação ou omissão, tinham plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento, atestada por laudo técnico, elaborado por junta nomeada pelo juiz”. Tal previsão, por se constituir em retrocesso histórico, demanda dos trabalhadores do campo social como psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais, profunda reflexão e análise de implicação: aceitarão ocupar este lugar?

Aceitar a fixação da idade penal em 18 anos é uma decisão política que em nada implica em acreditar que o adolescente saiba ou não o que está fazendo. Significa, antes de tudo, que a sociedade está oferecendo ao adolescente, mediante uma proposta sócio-educativa bem definida, outra opção de vida que não a criminalidade.

Na realidade, o substitutivo aprovado na CCJ do Senado suscita o debate de questões que há muito estão sendo negligenciadas e que necessitam serem vistas com urgência, qual seja: o lamentável estado das prisões brasileiras, para o qual a atual Campanha da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia tem chamado a atenção; o fato de que o Estatuto da Criança e do Adolescente não foi ainda devidamente implantado, como tem demonstrado os inúmeros relatórios feitos a partir de visitas às Unidades do Sistema Sócio-Educativo; e a legislação anti-drogas, que tipifica como traficante pessoas envolvidas no varejo da droga. Em relação a este ponto, como sabemos, a política de combate às drogas tem elevado o número de mortes e superlotado as prisões e o sistema sócio-educativo sem, contudo, reduzir o consumo. O substitutivo aprovado, ao permitir que se encaminhe ao sistema carcerário adolescentes de 16 anos tipificados como traficantes, e que sairão ainda muito jovens das prisões, poderá agravar o problema que queremos combater, na medida em que, longe de exceção, o envio de adolescentes às prisões poderá se tornar a regra.

Assim, ao pender o barco para as medidas punitivas e não para as sócio-educativas, longe de resolver os problemas que nos afligem, o Brasil pode estar caminhando para a consolidação e o aprofundamento da histórica divisão da infância brasileira entre ‘crianças/adolescentes’ e ‘menores’ - divisão esta que levou os movimentos sociais a lutarem para que a Constituição Federal de 1988 adotasse a Proteção Integral para toda a infância e juventude brasileira e não apenas para uma parte dela.

Tendo em vista a situação acima descrita, e como principal órgão do sistema de garantias dos direitos da criança e do adolescente, o CONANDA decidiu entrar com mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal (STF) para tentar bloquear a tramitação no Congresso da emenda, por considerá-la inconstitucional e comprometedora da imagem e da credibilidade do país com relação aos compromissos internacionais assumidos. A ação tem o apoio da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude (ABMP) e está sendo redigida pelo jurista Dalmo Dallari.

Compreendendo que a situação de violência que estamos vivenciando é fruto de um longo e complexo processo histórico que, contínua e insistentemente, tem condenado parte da população brasileira ao descaso e à sub-cidadania, privando-a de mecanismos de proteção social, queremos, por fim, endossar as palavras do historiador Jean Hébrard, quando identifica o fato da escola pública não ser o espaço no qual convivem crianças da classe média e crianças mais pobres como um dos fatores que está na raiz da violência encontrada nas médias e grandes cidades brasileiras.

Afirmando que “a separação das crianças em dois mundos que não se encontram vai acabar num desastre”, e que a escola, como lugar onde se partilha uma cultura comum “é absolutamente essencial numa democracia”, Hébrard nos diz que a sociedade brasileira está diante de uma escolha: educação ou tanques nas ruas.

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* Esther Maria de Magalhães Arantes é Professora da UERJ e PUC-Rio e Coordenadora da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia

1 Para maiores informações consultar o ‘Mapa da Violência 2006 – Os Jovens no Brasil’, autoria de Julio Jacobo Waiselfisz, nos sites: “http://www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br/mapa_violencia_2006.html” e “http://www.oei.org.br“.

2 Posicionaram-se contra a redução da idade penal, as seguintes entidades nacionais: CONANDA, FNDCA, FENDH, ANCED, Frente Parlamentar DCA, Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal e diversas outras entidades como ABMP, CNBB, OAB, CFP.