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A medicalização da infância: um mercado em expansão

Monica Lavoyer Escudeiro *

Há quase vinte anos, acompanho estarrecida a crescente marcha da nova frenologia dos distúrbios mentais. Especificamente, o desenvolvimento do que parte dos psiquiatras e neuropsicólogos denominam de Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade, o TDAH. Nos EUA, cerca de 1,5 milhão de crianças diagnosticadas com TDAH estavam sendo tratadas com psicoestimulantes (metilfenidato) em 1996.

Um aumento de 2,5% entre os anos de 1990 e 1995 evidencia uma explosão na casuística, caracterizando proporções epidêmicas. Este quadro chamou a atenção das políticas públicas de saúde e do Congresso Americano, tendo suscitado veementes discussões sobre aspectos psicossociais. Somente em 1995, meio milhão de crianças entre 3 e 6 anos receberam prescrições de Ritalina (nome comercial do metilfenidato), segundo estimativas da Associação Psiquiátrica Norte-americana. A medicalização do TDAH, entretanto, aumentou muito mais nos últimos anos. A Associação de Psicologia Americana, em junho de 2001, na revista Monitor on Psychology1, informa que mais de 2 milhões de prescrições de Ritalina são feitas a cada ano, uma estarrecedora taxa de 4 crianças por minuto. Tanto aquela instituição, quanto a Academia Norte-americana de Psiquiatria Infantil e de Adolescentes, reconheceram a necessidade de maior rigor nos diagnósticos, recomendando aos especialistas que não se baseassem somente em inventários de sintomas ou em queixas de pais e professores.

No Brasil, o quadro segue este preocupante ritmo a passos largos. Programas de difusão e tratamento do TDAH vêm sendo criados, tendo como premissa que a hiperatividade infantil é uma doença orgânica e que precisa ser medicada através do uso regular de psicoestimulantes como a Ritalina e o Concerta. O que ninguém ressalta é o fato de que alguns desses grupos de pesquisa e de esclarecimento à população são financiados pelas indústrias farmacêuticas que fabricam os medicamentos indicados no tratamento. Qualquer um pode verificar estes eventuais conflitos de interesses caso reserve tempo para uma busca na internet. As empresas Jansen-Cilag, Elli Lilly, Novartis e GlaxoSmithKline, que comercializam os medicamentos Concerta, Straterra, Ritalina e Dexedrina, todos largamente usados no lucrativo mercado do TDAH, financiam as pesquisas clínicas de associações que afirmam seguir, dentre os valores que norteiam seus programas, a ética na pesquisa e universalização dos conhecimentos.

Diante do que se considera um exagero diagnóstico e da exacerbada incidência de equívocos nas pesquisas, há uma clara indicação de que os critérios de inclusão diagnóstica, obtidos dos instrumentos mais usados – CID-10, DSM-IV, Escala de Conners – careçam de especificidade. A pesquisa de 1994 em João Pessoa (PB)2 para a validação desta escala em sua versão brasileira, adaptada da versão original inglesa abreviada por Conners, por exemplo, demonstrou forte inconsistência. De acordo com o relatório da pesquisa, a capacidade dos respondentes é questionada ao mesmo tempo em que valida o instrumento. A falta de consenso entre pais e professores na identificação da criança como hiperativa e desatenta foi considerada como uma falha na capacidade perceptiva deles. A falha perceptiva dos pais é justificada como decorrente da falta de noções gerais para uma boa criação em função de fatores psicossociais e, em relação aos professores, considerou-se que eles careciam de uma boa preparação psicopedagógica à altura de poderem detectar tais condutas. Qual foi então a conclusão da pesquisa? De que o número de crianças hiperativas deveria ser maior do que o que foi obtido na pesquisa.

Uma das conclusões que qualquer estudante de psicologia é capaz de fazer é considerar improcedente atribuir-se a causa da hiperatividade a distúrbios de ordem neurológica ou bioquímica, quando o contexto de desenvolvimento do qual a criança participa está comprometido. A amostra de diversas pesquisas que adotam o modelo médico do fenômeno, aponta fatores como depressão materna, alcoolismo, “nervosismo” como indicadores genéticos de predisposição ao TDAH e não como fatores psicossociais que afetam o equilíbrio emocional e cognitivo das crianças. Fatores que evidenciam desarmonias na vida de relação e que comprometem a qualidade do processo socializante em seus diversos matizes. Nesta situação, diagnosticá-la como tendo um transtorno mental (TDAH) é dizer que todo seu comportamento é resultado de um cérebro que não funciona como deveria, eliminando toda e qualquer influência ambiental em seu modo de ser e agir no mundo.

Valente (1998)3, em sua tese de doutorado, chama a atenção para a armadilha da neofrenologia dos distúrbios mentais, facilitada pelo uso das sofisticadas técnicas de neuroimagem. Afirma que achados de diferenças morfológicas ou metabólicas em amostras de pessoas com o transtorno precisam ser interpretadas como evidências de tendências, e não como comprovação de uma relação causal. Neste sentido, a declaração de Maryland, do National Institutes of Health Consensus Conference on Attention Deficit Hyperactive Disorders de 1998, continua atual: “Até agora, nós não temos um teste-diagnóstico para o TDAH (bioquímico, fisiológico, anatômico, genético, etc.), portanto, a validade da desordem continua a ser um problema”.

O termo TDAH, aplicado ao comportamento infantil, não é adequado, por transformar um processo dinâmico em fenômeno estático. Desta forma, modalidades de expressão comportamental como “falar muito” e “não permanecer quieto na cadeira”, em vez de definirem uma atividade entre pessoas, ou entre uma pessoa e o ambiente, perdem seu significado relacional e transformam-se na categoria “hiperatividade” do DSM-IV. Esta abstração de um sistema dinamicamente interativo permite que tais comportamentos sejam reificados, tornando-os passíveis de catalogação numa entidade nosológica estanque, como é feito no DSM-IV e na CID-10. Perde-se toda e qualquer singularidade do comportamento humano para que o indivíduo seja diagnosticado e medicado.

Tanto aspectos referentes à inclusão diagnóstica devido às questões de intensidade como, por exemplo, “algazarra excessiva”, como aspectos diferenciais devido a comorbidades, confundem o diagnóstico e o tratamento. Mas quanto à etiologia, fisiologia, neurologia, avaliação e diagnóstico do TDAH, não há consenso em nenhuma parte do globo terrestre. Parece haver harmonia somente em um item de toda esta polêmica: a indicação de psicoterapia no tratamento. Defensores dos modelos médicos e dos modelos psicossociais do fenômeno a defendem para uma boa resolução da hiperatividade e falta de atenção. Mas, diferentemente do que alardeiam os grupos e associações de Déficit de Atenção, não é condição necessária que seja a Terapia Cognitivo Comportamental-TCC. Estes grupos vêm afiliando psicólogos em todo o território nacional, baseados na falsa premissa de que somente a TCC é capaz de ajudar na redução da hiperatividade infantil. A título de demonstração, vejamos a pesquisa de Gorodscy (1991)4. Sob o referencial da psicomotricidade relacional, 22 crianças diagnosticadas com Distúrbio do Déficit de Atenção com Hiperatividade, DDAH (sigla da época da pesquisa) foram avaliadas psicologicamente. Observa-se que nenhuma delas estava fazendo uso de medicação. Nesta abordagem, concebe-se que as crianças hiperativas usam o corpo como “expressão comunicativa”. Todas as crianças da amostra demonstraram vivências de desconforto e sofrimento em suas relações. Maus-tratos, expulsões de escola e cobranças diversas eram comuns em suas vidas. A seu próprio respeito, algumas crianças transitavam de um polo a outro do conceito maniqueísta, ser bom ou mau era motivo de ansiedade constante. Quanto ao desenvolvimento afetivo inicial, a pesquisa ressaltou aspectos negativos no processo socializante, como: sentimentos de insegurança, pouca continência e confiabilidade. Das 13 crianças que puderam freqüentar as sessões psicoterápicas individuais e semanais, por um período de seis meses a um ano, todas apresentaram redução da hiperatividade, aumento do rendimento escolar e melhoria na organização psíquica. Os resultados foram considerados como forte evidência da origem psicodinâmica da síndrome hiperativa em crianças neurologicamente normais.

No entanto, sob a legenda de que a sociedade está desinformada acerca do distúrbio, as indústrias farmacêuticas e suas associações geram evidências para provar que crianças hiperativas e desatentas sofrem de um distúrbio orgânico, que o tratamento é fácil e está ao alcance de todos, bastando estender as mãos e engolir.

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* Monica Lavoyer Escudeiro é psicóloga clínica e mestre em Psicologia Social pela UERJ (2001) com a dissertação “O Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade e a Atribuição de Causalidade”. É Pós-graduada em Psicologia Cultural pela Universidade da Califórnia (Santa Cruz, EUA) e em Psicologia Cognitiva pela Universidade de Stanford (Palo Alto, EUA).

1 DAW, J. (2001). The ritalin debate. Monitor on Psychology. Washington, v.32, n.6, p.64.

2 BARBOSA, G.A. (1994). Transtornos Hipercinéticos: validação do questionário de Conners em escolares de João Pessoa. Jornal Brasileiro de Psiquiatria. Rio de Janeiro, v.43, n.8, p.445-453.

3 VALENTE, A.B. (1998). Funções executivas na criança com déficit de atenção: Avaliação utilizando testes neuropsicológicos e atividades de programação logo. 230f. Tese (Doutorado em Neurologia e Neurociência). Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.

4 GORODSCY, R.C. (1991). A criança hiperativa e seu corpo: um estudo compreensivo da hiperatividade em crianças. 166f. Tese (Doutorado em Psicologia). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.