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O adolescente e a violência da falta de referências

Paula Mancini C. M. Ribeiro *

Uma situação de violência doméstica é diferente do que nomeamos como violência urbana. Em uma situação de violência urbana, situação colocada no cenário público e na maioria das vezes pontual, o autor da violência é desconhecido. Trata-se de uma situação que pode ser mais facilmente identificada e circunscrita, e isso é diferente de uma situação de violência doméstica.

Esta última se caracteriza por ser vivida entre a criança ou o adolescente e alguém do conhecimento deles, na maioria das vezes alguém que ocupa um lugar importante em sua constituição. Por haver o envolvimento de pessoas de referência, um pai ou uma mãe, muitas vezes estão presentes, de forma intensa, sentimentos contraditórios de amor e ódio, confiança e medo, respeito e desprezo. Escutamos dos jovens, por exemplo: “(…) ele é violento, mas gosta de mim, é meu pai”, ou “(…) para quem eu pediria ajuda se era meu pai quem fazia isso comigo?” “Não quero que ele faça isso, mas não quero que ele vá preso”. Nessas situações, a pessoa de quem se esperava a transmissão da lei - de uma lei maior que viria de um posicionamento ético diante da vida -, é aquela que não se submete e transgride essa mesma lei cometendo um ato violento.

Assim, embora possamos pensar que há diferenças entre uma situação de violência urbana e uma de violência doméstica, quando pensamos na ocorrência crescente de jovens envolvidos em situações de conflito com a lei, isso também nos remete a questão sobre como se encontram os lugares de referência hoje para o adolescente.

No Núcleo de Atenção à Violência (NAV)1 atendemos crianças, adolescentes e autores de agressão. No atendimento a criança ou ao adolescente, também escutamos seus pais ou responsáveis, e isso nos possibilita afirmar, não apenas que cada situação familiar é totalmente singular, como também que cada um na família vivencia de um modo próprio o que está acontecendo. A gravidade, assim como os efeitos de uma situação de violência, depende de vários fatores como: posição do autor da agressão, freqüência, modo como acontece, mas principalmente do modo como cada um pode lidar com o que lhe acomete. Muitas vezes observamos que a situação é tão mais grave quanto mais se esvaziam os lugares de referência. Nesse sentido, um aspecto fundamental na orientação do trabalho desenvolvido pelo NAV é escutar o sujeito, tenha ele chegado em posição de ter sofrido ou cometido um ato violento.

Na maioria das vezes somos tomados pelo que há de mais dramático em uma situação de violência. Tendemos a considerar essa situação como passível de falar por si e já atribuímos aos envolvidos o que devam estar sentindo, o que não precisam sentir, caindo em uma lógica onde se vitimiza um lado e culpabiliza o outro. Por outro lado, quando escutamos e possibilitamos às pessoas envolvidas a falarem e se ouvirem, inauguramos a chance de quem fala poder se situar em seu discurso, reconstruir o que viveu e se reposicionar em suas relações.

Para ilustrar, é freqüente que uma situação de violência sexual aconteça mesclada com sedução, ou seja, aquela mesma moça que é violentada pode ser também a escolhida e de alguma forma protegida, o que pode lhe deixar confusa em relação a seus próprios sentimentos, dificultando a identificação da situação como violenta. O autor da violência, por sua vez, pode ser alguém que, diferente do que se imagina, fique muito angustiado com seu ato e queira ajuda. Isso não quer dizer que não seja preciso uma abertura e um trabalho para que ele venha a se interrogar pelo que fez. Em uma situação de violência física, é preciso discernir se o que ocorre parte de uma tentativa desesperada de contenção, por uma preocupação de colocar limites, ou se parte de uma agressividade gratuita, pois são situações completamente diferentes. Questões subjetivas também estão implicadas quando, por exemplo, um adolescente de tamanho e força física, não consegue ter nenhuma reação a um espancamento cometido por um adulto colocado por ele em um lugar de referência. Muitas vezes esses dados são desconsiderados e o adolescente é ridicularizado ou culpabilizado pelo que se passou, como se fosse simples ter reagido ou revidado. Nos dois exemplos vemos que não é possível anteciparmos o que possa estar implicado nas situações, tanto por parte de quem sofre quanto por parte de quem comete o ato violento. É apenas a partir da escuta de cada um que se configura qual é a situação a ser enfrentada e elaborada. Se no primeiro caso é importante que a jovem possa falar do que a angustia, da ambivalência de seus sentimentos, no segundo faz diferença que a “fragilidade” do adolescente também seja vista pelo que ele preserva de respeito à alteridade, apesar do que vem sofrendo.

Pode ser mais fácil identificarmos uma situação de violência doméstica quando esta se apresenta por um excesso por parte de um pai ou responsável, mas o que hoje é muito freqüente, e às vezes tão grave quanto, são situações em que os responsáveis se omitem ou se retiram de seus lugares, muitas vezes considerando a situação do filho como perdida, o que pode acontecer em um momento em que o adolescente ainda precisa muito do apoio destes.

Vale lembrar que o momento da adolescência é um momento de perdas, decepções e rupturas, período em que o jovem é chamado a fazer escolhas e assumir maiores responsabilidades. Trata-se de um momento em que algo ainda se encontra em suspensão e cujo desfecho implica no estabelecimento de uma determinada forma de se relacionar com os outros e com as coisas.

Se os pais caem no conceito do jovem é porque no lugar daquele mundo adulto idealizado, ele se encontra com as dificuldades e a precariedade da vida. Para os pais também não é um momento fácil. O crescimento dos filhos também os remete ao envelhecimento e aos limites que se recolocam para eles. Assim, se o que tem predominado nas famílias são relações onde a heterogeneidade e os limites não se fazem presentes, onde os pais não ocupam seus lugares de autoridade, a dificuldade para o jovem se duplica quando no social o que ele encontra é também uma lógica de acesso ao mundo que não respeita a interdição, que não se dá pela simbolização, mas pelo acesso direto ao objeto. Se ele não encontra em casa o respeito à interdição, a aceitação de que nem tudo é possível, também não será fácil encontrar isso fora de casa, uma vez que vigora no social a idéia de que tudo é admissível. A sociedade privilegia o imediatismo ao investimento, os objetos à subjetividade. Desse modo - em certa extensão ao que se passa dentro de casa (e de forma radical quando está em jogo uma situação de violência doméstica) – a lógica encontrada no social é também de atenuação das diferenças e economia do sujeito, o que se evidencia nas inúmeras situações de adolescentes envolvidos com drogas ou em conflito com a lei. É muito comum a suposição dos jovens de que a posse de determinado objeto ou atributo seja o que venha a lhe garantir algum lugar.

O que se encontra hoje não é algo que convoque o adolescente a apostar no seu desejo – seja em relação à entrada no trabalho ou na vida sexual, aposta que é sempre sem garantias, pois os resultados dependerão de seu investimento e de sua coragem – mas sim a idéia de que será reconhecido em função de objetos que lhe garantam algum tipo de poder, seja uma roupa, seja uma droga, seja uma arma, e isso traz conseqüências. O que percebemos em nossos dias é que não é simples incluir alguma medida de incompletude nas situações, uma vez que encontramos a cada esquina a idéia de que é possível uma vida sem falta. No entanto, em muitas situações de jovens em conflito com a lei podemos fazer a leitura de um apelo à introdução da interdição ou de um limite. Não é raro escutarmos desses jovens que “sozinho não seria possível parar” ou “ainda bem que me pegaram, não queria mais fazer isso”, como se reconhecessem a necessidade da presença de algum outro que viesse lhe barrar.

Hoje, paradoxalmente, se existem situações em que o jovem é imediatamente condenado, como se fosse um adulto, - e muitos atos de jovens são direcionados como se fossem apelos a quem possa vir ocupar um lugar de referência para eles -, existem outras situações em que eles são imediatamente aliviados. Se é fundamental que sejam ouvidos, isso não significa que à sua fala deva ser dado um valor absoluto. Muitas vezes isso acontece, por exemplo, quando em seguida a uma denúncia feita por um jovem em relação a um dos pais, são abertos processos criminais sem que este seja ouvido, o que ilustra um funcionamento que recai facilmente na desconsideração daqueles que ocupam ou deveriam ocupar lugares de referência para ele.

Quando o adolescente não conta com lugares de referência, - lugares que muito facilmente nos poupamos de ocupar por receio de exercer uma autoridade excessiva, mas que por outro lado acaba por resultar em uma horizontalidade que impede a transmissão dos limites necessários na vida -, ele fica muito sozinho e perdido em um momento delicado de sua formação. Nesse sentido, os profissionais que lidam em sua prática com adolescentes podem ter uma função muito importante.

O que de início pode ser significativo, é o encontro com um profissional que possa escutar o que lhe é endereçado sem antecipar-se aos propósitos de resoluções fáceis e imediatistas, confiando, assim, na construção de um vínculo. Também faz parte do desafio que se coloca para nós, que essa escuta seja feita de um lugar diferenciado e sem os preconceitos e precipitações tão comuns em situações dramáticas.

Sustentar um lugar ao qual o adolescente possa se reportar, sem a intenção de lhe dar dicas ou conselhos morais, pode possibilitar que eles se perguntem pela sua posição em relação ao outro, reflitam sobre sua história e venham a construir formas diferentes de estar nas suas relações. Transformar em palavras o que aparece em seus atos desesperados é o que pode trazer para o jovem a chance de fazer face à questão da violência.

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* Paula Mancini C. M. Ribeiro é Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-RJ, membro do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica e Coordenadora do Núcleo de Atenção À Violência – NAV.

1 O Núcleo de Atenção à Violência (NAV), é uma ONG que oferece atendimento psicanalítico a crianças, adolescentes e autores de agressão envolvidos em situações de violência doméstica e/ou risco social, e oferece também um trabalho de capacitação e supervisão para profissionais das redes de saúde, educação, assistência e justiça. Para maiores informações consultar o site www.nav.org.br